A anatomia de um crime
“Governa um país grande com a mesma perícia com que fritas um peixe pequeno”.
Tao Te Ching
A violência inerente ao escultor perpassa todas as obras desta exposição. Não uma violência desarrumada mas todo o contrario disso. O que está à nossa frente é uma decantação meticulosa do cruzamento de linhas que volteiam o verbo “amanhar”.
Violência meticulosa da composição. “Amanhar”. Compor.
Amanhar diz-se da terra e do peixe.
Se há nestas peças passagens entre elementos, evocação da água e da terra, elas devem-se às teias de sentido que estas peças abrem na vizinhança umas das outras. O millieuaquático do animal peixe encarnado internamente na própria escala do mesmo; o millieuterrestre a aparecer na estrutura-estufa a remeter para os ciclos de trabalho da mão humana, agrícola, cultural.
Sacar os gestos e os animais do seu entorno para os recolocar dialogantes uns com os outros, dar a ver as passagens significantes que falamos na nossa língua esquecendo-as de cada vez que as dizemos. Reúne-se aqui, então, novamente o sentido e espraia-se em radial nos pontos em que toca: amanhar diz-se da terra e dos peixes e aqui temos a grande peça de cerâmica modular às postas e inteira simultaneamente.
Exo-estruturas é do que se trata. Os enchimentos ou entranhas foram esvaziados, limpos. O conteúdo mostra-se já sem contidos nem continentes. É essa a violência a operar aqui. Para quê dissecar? – perguntamos. No caso de Dalila Gonçalves dissecar é uma missiva poética. Poética de repor, “pôr com ...”, amanhar, diríamos, meticulosamente porque um método é desvendado. Qual método? O de voltear em círculos objectos que se ligam nos termos mais esquecidos, porque quotidianos, da linguagem. A ligação é intuída ao início, operando nos objectos em contexto, na matéria e nos encontros de quem anda muito a pé, porque a vocação da intuição é pedestre. Depois de encontrados os objectos ou princípios de obra, a ligação é estudada porque muito rapidamente se dá em teia radial de significado e o que interessa, afinal, é esvaziar a literatura e chegar ao literal porque o literal brilha e faz-nos sentar na raiz das palavras.
Na linha das exo-estruturas que o amanhar descobre temos ainda mais duas instâncias:
Numa das paredes da galeria vemos um conjunto de baixos relevos em porcelana onde figuram impressões de desenhos diagramáticos, fórmulas, cálculos de movimento e forças de terra, feitas a partir de matrizes usadas para imprimir os estudos dos engenheiros de minas. Numa das impressões lê-se “equilíbrio de nós” – área de estudo da engenharia de estruturas, território e construção na qual o “sistema dos nós” é comummente usado para a construção de pontes. É de relevar que “nós” em Português têm o duplo significado de primeira pessoa do plural (nosotrosem Castelhano) e de substantivo (o plural de nó).
Tal conjunto lembra de relance a vista aérea de um território onde grifos foram inscritos no solo. O carácter diagramático dos desenhos atira-nos para uma espécie de contemplação inquiridora porque intuímos que são uma linguagem fugidia à nossa decifração imediata.
Do diagrama passamos ao mapa, personificado na fotografia que mostra um caracol numa bola de Basquetcujo uso e a erosão fazem parecer um globo terrestre. Mais uma vez a perspectiva olho de pássaro é usada como dispositivo de fazer aparecer uma relação peculiar com a “estrutura”. O caracol é visto a circumnavegar a bola. Dá-se um duplo desdobramento da ideia de mapa entendido ele próprio como exo-estrutura, planar, desta vez. Nas bolas de Basquethá as características linhas que reproduzem as linhas do campo de Basquet– chamada de atenção para uma poética das superfícies – jogo entre o mapa planar do campo e o mapa esférico do globo. O caracol passa a personificar o princípio da aderência do corpo à superfície, transportando também ele “um mundo” que é mais uma vez exo-estrutura, casa espiralada, que ele habita volteando-se, encolhendo e distendendo. O corpo mole do caracol torna-se ponte orgânica, eixo de ligação alternando interior e exterior entre os dois mundos no avesso um do outro.
Francisca Carvalho
Lisboa, 5 de Setembro, 2020
A anatomia de um crime
“Governa um país grande com a mesma perícia com que fritas um peixe pequeno”.
Tao Te Ching
A violência inerente ao escultor perpassa todas as obras desta exposição. Não uma violência desarrumada mas todo o contrario disso. O que está à nossa frente é uma decantação meticulosa do cruzamento de linhas que volteiam o verbo “amanhar”.
Violência meticulosa da composição. “Amanhar”. Compor.
Amanhar diz-se da terra e do peixe.
Se há nestas peças passagens entre elementos, evocação da água e da terra, elas devem-se às teias de sentido que estas peças abrem na vizinhança umas das outras. O millieuaquático do animal peixe encarnado internamente na própria escala do mesmo; o millieuterrestre a aparecer na estrutura-estufa a remeter para os ciclos de trabalho da mão humana, agrícola, cultural.
Sacar os gestos e os animais do seu entorno para os recolocar dialogantes uns com os outros, dar a ver as passagens significantes que falamos na nossa língua esquecendo-as de cada vez que as dizemos. Reúne-se aqui, então, novamente o sentido e espraia-se em radial nos pontos em que toca: amanhar diz-se da terra e dos peixes e aqui temos a grande peça de cerâmica modular às postas e inteira simultaneamente.
Exo-estruturas é do que se trata. Os enchimentos ou entranhas foram esvaziados, limpos. O conteúdo mostra-se já sem contidos nem continentes. É essa a violência a operar aqui. Para quê dissecar? – perguntamos. No caso de Dalila Gonçalves dissecar é uma missiva poética. Poética de repor, “pôr com ...”, amanhar, diríamos, meticulosamente porque um método é desvendado. Qual método? O de voltear em círculos objectos que se ligam nos termos mais esquecidos, porque quotidianos, da linguagem. A ligação é intuída ao início, operando nos objectos em contexto, na matéria e nos encontros de quem anda muito a pé, porque a vocação da intuição é pedestre. Depois de encontrados os objectos ou princípios de obra, a ligação é estudada porque muito rapidamente se dá em teia radial de significado e o que interessa, afinal, é esvaziar a literatura e chegar ao literal porque o literal brilha e faz-nos sentar na raiz das palavras.
Na linha das exo-estruturas que o amanhar descobre temos ainda mais duas instâncias:
Numa das paredes da galeria vemos um conjunto de baixos relevos em porcelana onde figuram impressões de desenhos diagramáticos, fórmulas, cálculos de movimento e forças de terra, feitas a partir de matrizes usadas para imprimir os estudos dos engenheiros de minas. Numa das impressões lê-se “equilíbrio de nós” – área de estudo da engenharia de estruturas, território e construção na qual o “sistema dos nós” é comummente usado para a construção de pontes. É de relevar que “nós” em Português têm o duplo significado de primeira pessoa do plural (nosotrosem Castelhano) e de substantivo (o plural de nó).
Tal conjunto lembra de relance a vista aérea de um território onde grifos foram inscritos no solo. O carácter diagramático dos desenhos atira-nos para uma espécie de contemplação inquiridora porque intuímos que são uma linguagem fugidia à nossa decifração imediata.
Do diagrama passamos ao mapa, personificado na fotografia que mostra um caracol numa bola de Basquetcujo uso e a erosão fazem parecer um globo terrestre. Mais uma vez a perspectiva olho de pássaro é usada como dispositivo de fazer aparecer uma relação peculiar com a “estrutura”. O caracol é visto a circumnavegar a bola. Dá-se um duplo desdobramento da ideia de mapa entendido ele próprio como exo-estrutura, planar, desta vez. Nas bolas de Basquethá as características linhas que reproduzem as linhas do campo de Basquet– chamada de atenção para uma poética das superfícies – jogo entre o mapa planar do campo e o mapa esférico do globo. O caracol passa a personificar o princípio da aderência do corpo à superfície, transportando também ele “um mundo” que é mais uma vez exo-estrutura, casa espiralada, que ele habita volteando-se, encolhendo e distendendo. O corpo mole do caracol torna-se ponte orgânica, eixo de ligação alternando interior e exterior entre os dois mundos no avesso um do outro.
Francisca Carvalho
Lisboa, 5 de Setembro, 2020