MIGUEL VON HAFE PEREZ
(Folha de sala exposição "Fonte Sonora" - CAV - Centro de Artes Visuais . Coimbra )
Fonte Sonora
Miguel Von Hafe Perez
Dalila Gonçalves (Castelo de Paiva, 1982) é uma artista absolutamente singular. Com um percurso silencioso, mas consistente, tem vindo a estabelecer-se como uma das mais interessantes presenças no panorama das artes visuais portuguesas. Tal como outros protagonistas de uma geração que circula com maior facilidade tanto a nível académico, como institucional, entre exposições e residências internacionais, a sua prática é frequentemente tecida a partir de uma leitura contextual das oportunidades que lhe vão surgindo. A sua visibilidade crescente tem vindo a ancorar-se não só em Portugal como no estrangeiro (com exposições e presença em coleções de diversos países europeus, nos E.U.A, no México e no Brasil).
Das intervenções no espaço público às subtis interrogações sobre a possibilidade da arte se erigir enquanto fronteira permeável entre o natural e o artificial, a artista tem vindo a demonstrar uma peculiar capacidade de interrogar os materiais e de descontextualizar proficuamente modos do fazer artesanal ou mecânico, o que lhe permite explorar vias concetuais e processuais originais na utilização de meios tão diferenciados como o vídeo, a fotografia, a cerâmica, a escultura e a instalação. Assim, mais do que uma leitura estritamente formal daquilo que observa, interessam-lhe leituras onde questões de sociabilidade, da impermanência do tempo, do uso-valor das coisas e das reminiscências históricas dos objetos se sobrepõem em camadas de significação que tornam a receção das suas obras mais densa e complexa.
Para a exposição no CAV, a artista propõe uma instalação site-specific, onde o denominador comum é a relação tangencial e propositadamente distanciada com a natureza. Ao apresentar uma escultura enigmaticamente sinuosa, composta pela conjugação de cabaças pintadas no interior do espaço expositivo, a artista refere imediatamente a evidência do material apropriado, ainda que tingido com uma cor verde que tanto aproxima ao natural, como sublinha o artificial. As cabaças são frutos de uma planta que milenarmente têm sido utilizados como contentores de líquidos (principalmente a água e o vinho) pela sua especial capacidade de retenção de uma frescura indispensável nos climas onde esta prática se estabeleceu primordialmente: do norte de África, à América latina, com extensões ao continente asiático. Na instalação do CAV, a artista sublinha esta capacidade de impermeabilidade térmica e armazenamento mediante a utilização de sons produzidos quer pela água, como por sementes a revolverem nos seus recipientes.
Não deixa de ser curioso que as cabaças recolhidas pela artista sejam primordialmente exemplares com “defeitos” peculiares: a deformação da natureza será definidora da função a que o homem destina certos utensílios para os seus propósitos? Servindo, por vezes, de instrumentos musicais, será que a perfeição da forma é indispensável à sonoridade almejada? Não é disso que aqui se trata. Como foi referido, este serpentear no espaço de cabaças manipuladas é acima de tudo a afirmação de um latejar em potência: a natureza a desafiar o espaço institucional, num artifício concetual de evidente espessura significativa. O som da água faz-me lembrar palavras da crítica de arte espanhola Bea Espejo na entrevista que fez à artista (https://dalilagoncalves.com/levantarfervura/): “[Dalila Gonçalves] Comporta-se como a água: transparente, não poderia parar mesmo que quisesse, tentando identificar tudo, como se a corrente a levasse a um lugar aberto, cheio de realidades paralelas e conexões invisíveis.”
As características acústicas das cabaças, aqui enquanto ready-mades expandidos, são desnaturalizadas nesta instalação. Não se trata, então, de uma busca de qualquer empatia com a especificidade do material e da sua história. Trata-se, isso sim, de mostrar no forro das coisas a sua densidade alegórica. Como refere a artista na entrevista anteriormente citada: “Eu diria que me interessa aquele lugar intermédio, aquele jogo do que é e o que não é, entre o real e a imaginação, essa urgência de fazer ligações precisas e improváveis, diria que tudo isto define o meu trabalho como artista. E dedicar a minha vida a isto é, sem dúvida, um privilégio e, certamente, uma postura política. […] Posso dizer que quase todas as minhas obras são um processo de dissecação, de descoberta de objetos e materiais em todas as suas camadas até serem vistos por dentro. Falo de uma forma de imersão, de investigação da sua plasticidade, às vezes da sua história, às vezes da sua função, às vezes de tudo ao mesmo tempo. Fascina-me descobrir tudo o que dá forma aos objetos e aos seus materiais e mostrar o que os distingue.”
Arte como direito à expressão da dúvida, do método, da investigação, do erro e da superação. E sim, arte política. Porque de branqueamentos ideológicos está este mundo farto. Tudo passa na planura digital. A instalação de Dalila Gonçalves é uma medição primordial com o nosso corpo. Com os nossos sentidos. Com aquilo que nos define.
Miguel von Hafe
MIGUEL VON HAFE PEREZ
(Folha de sala exposição "Fonte Sonora" - CAV - Centro de Artes Visuais . Coimbra )
Fonte Sonora
Miguel Von Hafe Perez
Dalila Gonçalves (Castelo de Paiva, 1982) é uma artista absolutamente singular. Com um percurso silencioso, mas consistente, tem vindo a estabelecer-se como uma das mais interessantes presenças no panorama das artes visuais portuguesas. Tal como outros protagonistas de uma geração que circula com maior facilidade tanto a nível académico, como institucional, entre exposições e residências internacionais, a sua prática é frequentemente tecida a partir de uma leitura contextual das oportunidades que lhe vão surgindo. A sua visibilidade crescente tem vindo a ancorar-se não só em Portugal como no estrangeiro (com exposições e presença em coleções de diversos países europeus, nos E.U.A, no México e no Brasil).
Das intervenções no espaço público às subtis interrogações sobre a possibilidade da arte se erigir enquanto fronteira permeável entre o natural e o artificial, a artista tem vindo a demonstrar uma peculiar capacidade de interrogar os materiais e de descontextualizar proficuamente modos do fazer artesanal ou mecânico, o que lhe permite explorar vias concetuais e processuais originais na utilização de meios tão diferenciados como o vídeo, a fotografia, a cerâmica, a escultura e a instalação. Assim, mais do que uma leitura estritamente formal daquilo que observa, interessam-lhe leituras onde questões de sociabilidade, da impermanência do tempo, do uso-valor das coisas e das reminiscências históricas dos objetos se sobrepõem em camadas de significação que tornam a receção das suas obras mais densa e complexa.
Para a exposição no CAV, a artista propõe uma instalação site-specific, onde o denominador comum é a relação tangencial e propositadamente distanciada com a natureza. Ao apresentar uma escultura enigmaticamente sinuosa, composta pela conjugação de cabaças pintadas no interior do espaço expositivo, a artista refere imediatamente a evidência do material apropriado, ainda que tingido com uma cor verde que tanto aproxima ao natural, como sublinha o artificial. As cabaças são frutos de uma planta que milenarmente têm sido utilizados como contentores de líquidos (principalmente a água e o vinho) pela sua especial capacidade de retenção de uma frescura indispensável nos climas onde esta prática se estabeleceu primordialmente: do norte de África, à América latina, com extensões ao continente asiático. Na instalação do CAV, a artista sublinha esta capacidade de impermeabilidade térmica e armazenamento mediante a utilização de sons produzidos quer pela água, como por sementes a revolverem nos seus recipientes.
Não deixa de ser curioso que as cabaças recolhidas pela artista sejam primordialmente exemplares com “defeitos” peculiares: a deformação da natureza será definidora da função a que o homem destina certos utensílios para os seus propósitos? Servindo, por vezes, de instrumentos musicais, será que a perfeição da forma é indispensável à sonoridade almejada? Não é disso que aqui se trata. Como foi referido, este serpentear no espaço de cabaças manipuladas é acima de tudo a afirmação de um latejar em potência: a natureza a desafiar o espaço institucional, num artifício concetual de evidente espessura significativa. O som da água faz-me lembrar palavras da crítica de arte espanhola Bea Espejo na entrevista que fez à artista (https://dalilagoncalves.com/levantarfervura/): “[Dalila Gonçalves] Comporta-se como a água: transparente, não poderia parar mesmo que quisesse, tentando identificar tudo, como se a corrente a levasse a um lugar aberto, cheio de realidades paralelas e conexões invisíveis.”
As características acústicas das cabaças, aqui enquanto ready-mades expandidos, são desnaturalizadas nesta instalação. Não se trata, então, de uma busca de qualquer empatia com a especificidade do material e da sua história. Trata-se, isso sim, de mostrar no forro das coisas a sua densidade alegórica. Como refere a artista na entrevista anteriormente citada: “Eu diria que me interessa aquele lugar intermédio, aquele jogo do que é e o que não é, entre o real e a imaginação, essa urgência de fazer ligações precisas e improváveis, diria que tudo isto define o meu trabalho como artista. E dedicar a minha vida a isto é, sem dúvida, um privilégio e, certamente, uma postura política. […] Posso dizer que quase todas as minhas obras são um processo de dissecação, de descoberta de objetos e materiais em todas as suas camadas até serem vistos por dentro. Falo de uma forma de imersão, de investigação da sua plasticidade, às vezes da sua história, às vezes da sua função, às vezes de tudo ao mesmo tempo. Fascina-me descobrir tudo o que dá forma aos objetos e aos seus materiais e mostrar o que os distingue.”
Arte como direito à expressão da dúvida, do método, da investigação, do erro e da superação. E sim, arte política. Porque de branqueamentos ideológicos está este mundo farto. Tudo passa na planura digital. A instalação de Dalila Gonçalves é uma medição primordial com o nosso corpo. Com os nossos sentidos. Com aquilo que nos define.
Miguel von Hafe