(Exposição Bulir - Fundación RAC Pontevedra)
Levantar Fervura
Conversa da artista com Bea Espejo
DALILA GONÇALVES é uma dessas pessoas que parecem viver num tempo inexato e em muitos sítios em simultâneo. Diz que é uma escapista, que não oferece nenhuma resistência ao caminhar. Comporta-se como a água: transparente, não poderia parar mesmo que quisesse, tentando identificar tudo, como se a corrente a levasse a um lugar aberto, cheio de realidades paralelas e conexões invisíveis. Os mercados de segunda mão e as feiras são isso mesmo: territórios estranhos que vês, olhas, voltas a ver, aqui e acolá num gesto de apego que logo desaparece e regressas muitas vezes vazio, mas com palavras. Dalila escolhe uma tão vasta como um oceano: Bulir. É o título da sua exposição na Fundação RAC, mas também um canto de intenções. Falar de afetos e paixões pressupõe senti-los ou expressá-los com veemência. Em referência ao mar, implica uma certa agitação. Palavra sinónima de ebulição, bulir está a um passo de borbotão, borbulhão, borbulho. Estufar, escalfar ou cozer também são palavras relacionadas. Em galego, bulir significa ferver e é sinónimo de pressa. Também de apressar, agitar, abreviar. Bulir é fazer uma coisa o mais rápido possível, mexer-se incansavelmente de um lado para o outro, sentir-se irrequieto por uma infinidade de impulsos ou pelo tumulto de ideias que costumamos ter na cabeça.
Assim é o seu atelier no Porto, numa das ruas mais calmas do bairro do Bonfim. Há um 112 um pouco escondido e sem campainha. Dentro do atelier, reina a linguagem do acaso. Há um pedaço de madeira azul em frente à sua mesa de trabalho, com um nó de madeira apoiado em cima, como se fosse um acento, mas que, na realidade, mostra anseios de ramos que nunca chegaram a nascer. Testemunhos do passar dos anos. Uma ação subtil que disseca a intemporalidade natural. É uma obra prévia a Dissecar, de 2019. Na parede, dois volantes de badmínton em perfeito equilíbrio instável, uma fotografia de uma estátua de Pompeia e de um limão sulfatado que revelam a afeição por um elemento natural e outro patrimonial. O extraordinário face ao mundano. Ao fundo, começam-se a amontoar chaleiras que esperam ferver em projetos futuros. Olha-as com vontade de as começar a trabalhar. É curioso que bulir uma chaleira seja também sinónimo de tenaz.
Assim é Dalila — constante, persistente, com iniciativa. Uma artista aberta ao fascínio e ao mesmo tempo com um certo distanciamento inevitável. Às vezes, parece pensar com os olhos, consciente da máxima de W.G. Sebald de que a realidade é sempre diferente de tudo. O trabalho desta artista, nascida em Castelo de Paiva, Portugal, em 1982, consiste em redescobrir nos objetos e materiais o maior número de camadas possível, procurando mergulhar no interior, a partir da convicção de que neles existem histórias ocultas e fascinantes. Recolectar e inventariar é um dos seus trabalhos quase diários. Gonçalves joga com os modos com que apresenta os seus trabalhos. Por vezes, de uma aparência evocativa, paradoxal em relação às suas origens: materiais cheios de experiências e de memória que realçam uma estética própria que, por sua vez, os transmuta em obras de arte. Uma espécie de objets trouvés que, devido à sua história, geram outras narrativas. Decompomo-las nesta conversa.
Bea Espejo (BE) Na exposição Bulir, existem duas chaleiras e dois pássaros que cantam quando a água ferve. Uma peça intitulada Correntes de ar. Como surgiu essa ideia? Qual a sua ancoragem emocional?
Dalila Gonçalves (DG)
Durante o confinamento, passando a maior parte do tempo em casa dos meus pais, pude aperceber-me e deter-me em detalhes que sempre existiram, mas aos quais nunca tinha prestado muita atenção. O som da chaleira que me faz correr do meu quarto para o fogão, o silêncio de alívio após o assobio, a janela com as árvores atrás, os pássaros e o seu canto de fundo... Este cenário vem-me à cabeça sempre que vejo na exposição as chaleiras com os pássaros. De certa forma, remete a esse tipo de conforto quase mágico onde as histórias se cruzam e comunicam em diferentes lugares sem saber muito bem como.
(BE) Um gesto poético que esconde outro muito mais político...
(DG) Posso dizer que é um gesto simbólico e poético e que nisso pode estar a sua força política – atendendo à amplitude da palavra. Perante a impossibilidade de mudar o mundo, de combater as desigualdades, perante o consumismo excessivo, a constante aceleração, esse gesto quase anti-heroico é o máximo que consigo fazer enquanto artista. Interessam-me as nossas memórias, a simplicidade das pequenas coisas, objetos que têm as marcas da sua utilização, as histórias que encerram, objetos prestes a tornarem-se obsoletos, mas que ainda não o são, talvez porque ainda nos lembremos deles e das suas funções.
(BE) Dizem que o canto dos pássaros é um som que pode representar a paz. O mesmo poderia dizer ao pensar numa cozinha com uma chaleira a ferver...
(DG) O ponto de partida para esta instalação são as chaleiras de apito antigas, usadas no dia-a-dia. Mudo-lhes a escala e adapto-as ao espaço da Fundação, à relação entre a janela e o espaço exterior, mas também à relação entre os dois andares unidos por um fosso. De forma simples, posso dizer que convido o espectador a ouvir dois pássaros que “falam um com o outro”. Dois pássaros amarelos, como as chaleiras italianas Alessi, sobem ao nível das árvores que se encontram lá fora. O som e as chaleiras, embora manipuladas, lembram-me essas rotinas de outrora, mas também outros níveis conceptuais de perceção. Interessa-me esse tempo de relação entre o que parece óbvio, simples e reconhecível e, ao mesmo tempo, não tanto. Eu diria que me interessa aquele lugar intermédio, aquele jogo do que é e o que não é, entre o real e a imaginação, essa urgência de fazer ligações precisas e improváveis, diria que tudo isto define o meu trabalho como artista. E dedicar a minha vida a isto é, sem dúvida, um privilégio e, certamente, uma postura política.
(BE) Sempre houve uma grande tradição desse tipo de chaleiras em Portugal, certo?
(DG) Sim, sobretudo antigamente, um tipo de chaleiras com assobios que avisam quando a água ferve. É também um som que me faz lembrar os comboios e as fábricas antigas. O uso do apito de vapor, tal como acontece com a chaleira (apita para nos alertar da urgência de apagar o fogo), serve para chamar, avisar. Foi usado para marcar o momento de entrada e saída do trabalho ou para avisar que um comboio ou uma maquina de carga estava prestes a passar por um determinado local. Alerta para uma mudança. Nasci numa terra de minas de carvão e o som ainda faz parte das minhas memórias e das conversas com a família. Para a produção desta peça, usando os exemplos de chaleiras que tinha em casa, trabalhei com um artesão que faz alambiques e outros objetos em cobre. Na minha aldeia, há uma forte tradição no fabrico destes artefactos. Utilizando este conhecimento na produção de alambiques, produzimos estas chaleiras e o suporte para a água, da forma mais semelhante possível à original, mas respeitando a escala do espaço. É outro dos processos que me interessa muito: o caminho entre a produção artesanal e a industrial, sem rejeitar nenhuma das duas. Na verdade, estou interessada no tempo e nas marcas na matéria que separam as duas.
(BE) Havia muitas dessas figuras de aves em Colunas de ar, uma instalação que fizeste para a Galeria Quadrum – EGEAC – Galerias Municipais, em Lisboa, em 2021, e que parece ter uma relação direta com este projeto em Pontevedra.
(DG) Sim, o que deu origem à instalação apresentada na Galeria Quadrum foi precisamente o fascínio por esse tipo de objetos simples, assobios de barro com forma de animais que encontrei na minha última residência artística na Cidade do México. Quando voltei, continuei a investigar sobre esses assobios e dediquei-me a isso durante a pandemia. Comecei a procurá-los por todo o mundo e a colecioná-los. Encontrei o primeiro no México, imbuída da sensação de ser levada para outra paisagem por alguém que vendia uma simples lembrança. Hoje estes assobios têm uma função quase sempre lúdica, mas historicamente foram usados para caçar, em rituais religiosos ou para assustar inimigos. Podem ser encontrados em contextos geográficos e culturais tão diversos como o Luxemburgo, o Cazaquistão ou Portugal.
(BE) Em Colunas de ar, a ação sonora, a ação de instalação e o objeto são combinados.
(DG) Sim, um pouco. A primeira parte acontece fora da galeria. O espaço expositivo é visto de fora para dentro. A informação visual é reduzida a cabos de metal branco, que servem de suporte, e quatro escadotes de madeira, também brancos. Há intérpretes que tocam ocarinas (com sons de animais), escondidos e camuflados entre os espectadores e em diferentes partes do edifício, fazendo parte de um coro previamente ensaiado pelo músico e realizador Tiago Enrique. Na segunda parte, terminado o som, onze performers, também escondidos, juntam-se um a seguir ao outro. Transportam, em sacos especialmente concebidos para o efeito, mais de 600 ocarinas de argila com formas de animais diferentes, de países dos cinco continentes. Ocarinas que são suspensas por ordem de altura: animais aéreos mais altos, animais terrestres no meio e animais aquáticos e répteis mais perto do chão. Finalmente, sem o som de ocarinas e sem performers, convidam-se os visitantes -que observaram tudo a partir do exterior, através do vidro- a entrar e a vaguear entre estes pequenos animais que engoliram o espaço; para onde quer que vamos e olhemos, lá estão eles, mudos e a olhar para nós.
(BE) No teu trabalho há sempre uma dança entre o tradicional ou artesanal e o produzido em série que, pelo que sei, encobre uma reflexão mais vasta sobre o tempo.
(DG) Sim, sobre como o tempo faz os materiais e o objeto. Mesmo que o artesão produza as mesmas peças, estas nunca serão iguais e isso interessa-me muito. Os objetos estão abertos ao erro, ao fracasso, ao cansaço daquele dia, à alegria, à tristeza ou a uma certa energia. Há um tempo orgânico, mais próximo da natureza. Pelo contrário, o tempo industrial está mais próximo do da cidade, da velocidade, do instantâneo, da simultaneidade. Vou-me movendo entre esses dois mundos, o que, de forma mais ou menos inconsciente, se traduz no meu trabalho. Em algumas obras, exploro-os mais diretamente. Por exemplo, em Desgastar em Pedra, com a ajuda da família e dos amigos, retirei a areia de centenas de lixas Bosch de cor azul. No final, a obra tornou-se um grande tecido azul, preso a partir do teto, com uma pedra azul no chão. Nos vários quadrados de lixa que compõem o trabalho, como uma espécie de manta de retalhos, podem-se ver diferentes temperamentos, forças e energias – múltiplas pessoas naquele processo lento e sofrível de remover a areia do tecido. Através desta ação artesanal simples e literal, a lixa tradicional, que vinculamos a algo industrial sofreu um processo de dissecação. Há nesta obra um exemplo claro desse caminho, do industrial ao orgânico, seguindo o teu raciocínio.
(BE) Isso leva-me a pensar nas muitas camadas de significado que escondem as tuas obras, embora algumas sejam muito literais.
(DG) Posso dizer que quase todas as minhas obras são um processo de dissecação, de descoberta de objetos e materiais em todas as suas camadas até serem vistos por dentro. Falo de uma forma de imersão, de investigação da sua plasticidade, às vezes da sua história, às vezes da sua função, às vezes de tudo ao mesmo tempo. Fascina-me descobrir tudo o que dá forma aos objetos e aos seus materiais e mostrar o que os distingue. Por exemplo, no caso das chaleiras ou da instalação dos assobios, enfatizo o som como parte da obra, é mais uma camada que os caracteriza. Então, ainda que partilhando o mesmo som, quando o objeto está associado a uma forma reconhecível, podemos associar o som à forma, ouvindo um pássaro, um jaguar ou uma coruja... É como se, nesse processo de cirurgiã, quisesse fazer um túnel para cortar o caminho sinuoso de uma montanha para que, no caminho daquela estrada curta, possamos sonhar com a montanha ou, caso esse túnel já exista, me apeteça serpentear a montanha para entender o porquê e em que ponto o túnel foi feito. É neste equilíbrio de dois polos opostos que, de alguma forma, me vou movendo.
(BE) Vejo muitas chaleiras no estúdio à espera de futuros projetos. O que pensas fazer com elas?
(DG) Penso fazer uma espécie de “orquestra de chaleiras”. Com diferentes tipos de chaleiras que tenho vindo a colecionar a minha ideia é fazer alguns tubos metálicos para cada uma delas e adicionar diferentes figuras de animais que vou encontrando e que quero passar a bronze ou a resina. Ainda tenho que lhe dar umas voltas. Como terão diferentes formas e materiais, também os sons serão muito diferentes uns dos outros e podem ser explorados com os tempos de ebulição. Continuo a fazer testes diariamente, mas é em São Paulo que irei concretizar este projeto, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, numa residência e exposição no início do próximo ano.
(BE) Como é essa ideia de recolha como campo de trabalho?
(DG) Na verdade, coleciono histórias. Não sou uma colecionadora, nunca o fui. Não sou organizada e, sempre que tentei ser, perdi o interesse a meio do processo. Mas, no trabalho, sim. Agora consigo perceber porque me fascinam alguns objetos ou materiais e outros não, os pontos de união entre eles. Quando olho para as minhas obras, o que mais gosto é lembrar-me do processo, da história com a pessoa, daquele tempo de viagem, de procura, de mudança, daquele momento de ir ao mercado, de ser reconhecida, de que continuem a guardar-me moedas ou chaleiras, mesmo quando já não trabalho com elas. Houve uma altura em que todos sabiam que moedas procurava. Sinto as pessoas unidas a fazer o trabalho comigo. Essa generosidade é incrível. Acho que esse trabalho colaborativo vem da faculdade, quando fazia desenhos com milho nos espaços da cidade e depois fotografava os pombos a comer e a fazer o meu desenho enquanto o apagavam. Precisava de pessoas que me ajudassem a fazer o desenho rapidamente e a afugentar os pombos, para que o pudesse terminar. E em muitas outras ações que fazia no exterior. Sempre precisei de pessoas que me ajudassem.
(BE) Também antes, em 2020, trabalhaste com o som em Atrapasonidos, no México. O que te interessa exatamente dessa história sonora dos objetos?
(DG) Essa instalação começou no Brasil, na residência Pivô, embora de uma forma diferente, e foi concretizada num vídeo intitulado Concerto. Pouco depois, no México, usei as mesmas lixas, gastas em carpintarias de Portugal e do Brasil, para construir a instalação Atrapasonidos. O nome vem de “atrapanovios”, um brinquedo feito de palma que é comum vender-se lá. Com um artesão fiz umas réplicas com escalas específicas e usei-as para segurar garras de animais em metal com uma bola de vidro, que formavam parte da base dos bancos dos pianistas (especialmente os utilizados nos Estados Unidos) e a outros artefactos que encontrei, como peixes ou pássaros. Por baixo destes objetos, coloquei uns mecanismos de rotação simples, escondidos em bases de madeira ou cerâmica, que faziam girar as lixas como discos de vinil ou água como espelhos. Na verdade, trata-se de um conjunto de diferentes tempos e trabalhos. Há também outro trabalho, da série Playing with Time, 840 cubos de giz para tacos de bilhar...
(BE) Costumas trabalhar com vários projetos ao mesmo tempo?
(DG) Sim, sou um pouco caótica, pelo menos num determinando momento do processo, porque estou interessada em várias coisas ao mesmo tempo. Creio que, devido à natureza do meu trabalho, ao tempo que muitas vezes preciso para encontrar as coisas, ao tempo necessário para concretizar as peças, é quase obrigatório que trabalhe em vários projetos em simultâneo. Por um lado, pelo meu temperamento, por outro, porque tenho de produzir obras para diferentes exposições, de outra maneira seria impossível.
(BE) Falas do projeto Playing with Time, onde refletes de uma forma muito específica sobre a passagem do tempo e os vestígios que este gera. Penso nas bolas brancas de bilhar que amarelaram ao longo dos anos e que ordenas como um pantone, das mais claras às mais escuras. O que é para ti o tempo? É metáfora de quê?
(DG) Na minha prática, o tempo tem significados diferentes. Às vezes, uso-o como ferramenta ou como medium, ou seja, a passagem do tempo por si só já gera a obra, como nessa instalação das bolas de bilhar a que te referes. Uso-o também como metáfora quando, por exemplo, falo da perda de tempo ou da ideia de tempo associada ao dinheiro, ou quando olho para objetos que estão prestes a caducar, a ficar em desuso porque a passagem do tempo os tornou obsoletos. Penso num CD cheio de informação, nos selos, nas canetas de pena, nos arquivos de papel... Chamaria a isso tempo como metáfora, quando o evoco para falar emocionalmente, esse ritmo absurdo antinatural do nosso quotidiano. Um ritmo que também partilho.
(BE) O teu trabalho mudou muito ao longo dos anos?
(DG) Desde o início que tenho vindo a trabalhar com objetos, mas descontextualizando a sua leitura. Esse é o ponto de partida, embora a forma de o fazer tenha vindo a mudar. Em geral, existe um processo de reorganização poética de uma prática de recolha, seja por inventário de materiais do dia-a-dia (moedas, canetas, lápis...), seja pela sua singularidade que os transforma em objetos únicos. Há alturas em que repenso esse processo. Outras, vejo-o como um jogo experimental onde os ponho em diálogo com outros objetos, construindo narrativas que podem ser documentais ou ficcionais. Ou seja, numa prática com um forte lado processual, uso vídeo, fotografia, cerâmica, escultura e instalação para abordar diferentes linhas de interesse: a ideia de tempo como meio e metáfora, o resgate, o obsoleto, o percurso experiencial entre a indústria e o orgânico, entre a produção em massa e a produção artesanal.
(BE) São os objetos que te encontram ou és tu que os encontras?
(DG) Não sei bem. De uma forma mais racional, diria que sou eu que os encontro porque me abro ao caminho da procura, mas também é verdade que muitas vezes só encontro coisas quando não as procuro. Há várias fases dentro do processo de recolha. Encontrar um objeto ou um material, e mesmo uma situação que me pode levar a algo, é um momento muito especial, embora normalmente naquela altura não saiba o que irei fazer com ele. Há alturas em que essa descoberta singular é suficiente, mas, noutras, o processo pode levar-me a passar meses ou anos à procura de uma forma de lhe dar sentido.
(BE) É óbvio que trabalhas com várias ideias ao mesmo tempo. Quais são os materiais de trabalho, essas ideias, que estão em cima da mesa e com as quais trabalhas simultaneamente?
(DG) São materiais à minha volta. Sou um pouco viciada em viagens e caminhadas, por isso é grande a amplitude da expressão “à volta”. Independentemente dos objetos ou materiais que tenha, outra questão que ocupa grande parte do processo é como encontrar o melhor meio para passar a uma ideia ou valorizar o material que tenho, perceber se é a fotografia, a cerâmica, o vídeo ou a instalação. É nesta descoberta que reside o sucesso do trabalho. Um sucesso próprio, claro. Por isso, quando estou a explorar uma ideia, normalmente rodeio-me de objetos da mesma família ou que, de alguma forma, relaciono. Embora depois, e na maior parte das vezes, não os utilize.
(BE) Neste momento, há muitas cabaças no atelier...
(DG) Estou a trabalhar com as cabaças para uma instalação. Esta ideia já deu muitas voltas. Estava muito focada no som associado aos instrumentos musicais feitos com elas ou na sua capacidade para transportar líquidos... por isso me rodeei de instrumentos, sons, brinquedos, mas finalmente, resultaram em peças totalmente silenciosas.
(BE) Costumas dizer que não tens muita facilidade com a linguagem, mas há algo dela que me interessa muito em relação ao teu trabalho. Tens vindo a utilizá-la da forma mais precisa possível para que os detalhes sejam concretizados e alcancem um significado. O uso das palavras pode fazer soar todas as notas, manifestar todos os registos. Então, a imagem resultante, como acontece com um poema, organiza a história, leva a uma série de associações complexas.
(DG) Na faculdade pedem-nos que expliquemos tudo e espero que, com a idade, me possa explicar cada vez menos, seguir apenas uma inteligência intuitiva. Às vezes, penso que há algo muito visceral, que faço só porque sim, sem saber bem o motivo. Outras vezes, e como seres contraditórios que somos, faço o contrário.
(BE) Acreditas na rotina do trabalho? Isso leva-te a algum lugar interessante?
(DG) Há alguma rotina no processo e pensamento. Deixo notas áudio no meu telemóvel, dou passeios, viajo sempre que posso, devo dizer-te que grande parte do meu trabalho não acontece no meu atelier. Às vezes, o trabalho no atelier é algo forçado e doloroso, embora eu goste de experimentar e trabalhar com os materiais, a incerteza das decisões não é fácil de enfrentar. Posso trabalhar em qualquer lugar, especialmente no processo, mas tenho tendência de voltar à minha rede de afetos. Há uma logística emocional e prática criada ao longo do tempo que facilita muito na hora de concretizar. Isso é cada vez mais claro para mim.
(BE) O teu trabalho mudou quando entrou no mercado?
(DG) Vendo à distância, sim. Mas não sei se tem a ver com o mercado ou com a experiência, e também não me passa pela cabeça fazer algo que seja mais comercial. O que existem são algumas estratégias para escolher o melhor trabalho para um determinado contexto. Tentar apresentar algumas obras em contextos que não são os de uma feira de arte, pensar, dentro das obras que faço, quais são as melhores para serem vistas num espaço ou noutro.
(BE) Uma das tuas obras mais conhecidas é Kneaded Memory (Memória Amassada), produzida para a praça em Blankerberge, na Bélgica. Objetos que se assemelham a rochas, figuras de naufrágios de diferentes formas e tamanhos. Esta obra tornou-te muito conhecida e fez com que o mercado abraçasse o teu trabalho.
(DG) Era muito jovem quando fiz essa obra, tinha 28 anos. Fui convidada a participar numa Trienal na Bélgica. Tinham visto uma obra de fotografia onde enrugava fotografias de fachadas de edifícios vagos no Porto e depois, pelo enquadramento e luz, pareciam pedras. Na verdade, eram pedras de lixo. Interessavam-lhes que eu explorasse as relações de Portugal e Blankerberge. Os portugueses trouxeram azulejos de Antuérpia, em troca de sal. Quem organizava a trienal queria que a obra se concentrasse nas transformações sofridas pela cidade, na diminuição dos azulejos das fachadas e nas novas construções de betão naquela zona costeira. Mas as essas peças eram feitas de papel. Não sei bem como, mas houve um equívoco. E foi a partir desse equívoco que surgiu Memória Amassada. Concordei em fazer algo em cerâmica, sem nunca ter feito nada com esse material. No final, foquei-me numa praça da cidade rodeada de casas que ainda tinham alguns azulejos no chão das entradas. Com esses padrões, fiz esse tipo de fachadas de betão enrugadas, algumas com azulejos e outras apenas de betão. Acho que as peças estiveram lá durante um ano. E, sim, a visibilidade foi muito grande. Passados alguns anos, as peças regressaram a Portugal e a Câmara Municipal do Porto comprou-me três das dezanove e agora estão em frente à estação de comboios da cidade. O mais curioso é que descobrimos que os padrões belgas também existem no arquivo dos azulejos do Porto, por isso comecei a ver as peças como pedras que se movem entre espaços e histórias. Essa relação comercial do século XVII transformou-se noutra inesperada relação entre o passado e o presente, entre a memória, a recordação e o esquecimento.
(Exposição Bulir - Fundación RAC Pontevedra)
Levantar Fervura
Conversa da artista com Bea Espejo
DALILA GONÇALVES é uma dessas pessoas que parecem viver num tempo inexato e em muitos sítios em simultâneo. Diz que é uma escapista, que não oferece nenhuma resistência ao caminhar. Comporta-se como a água: transparente, não poderia parar mesmo que quisesse, tentando identificar tudo, como se a corrente a levasse a um lugar aberto, cheio de realidades paralelas e conexões invisíveis. Os mercados de segunda mão e as feiras são isso mesmo: territórios estranhos que vês, olhas, voltas a ver, aqui e acolá num gesto de apego que logo desaparece e regressas muitas vezes vazio, mas com palavras. Dalila escolhe uma tão vasta como um oceano: Bulir. É o título da sua exposição na Fundação RAC, mas também um canto de intenções. Falar de afetos e paixões pressupõe senti-los ou expressá-los com veemência. Em referência ao mar, implica uma certa agitação. Palavra sinónima de ebulição, bulir está a um passo de borbotão, borbulhão, borbulho. Estufar, escalfar ou cozer também são palavras relacionadas. Em galego, bulir significa ferver e é sinónimo de pressa. Também de apressar, agitar, abreviar. Bulir é fazer uma coisa o mais rápido possível, mexer-se incansavelmente de um lado para o outro, sentir-se irrequieto por uma infinidade de impulsos ou pelo tumulto de ideias que costumamos ter na cabeça.
Assim é o seu atelier no Porto, numa das ruas mais calmas do bairro do Bonfim. Há um 112 um pouco escondido e sem campainha. Dentro do atelier, reina a linguagem do acaso. Há um pedaço de madeira azul em frente à sua mesa de trabalho, com um nó de madeira apoiado em cima, como se fosse um acento, mas que, na realidade, mostra anseios de ramos que nunca chegaram a nascer. Testemunhos do passar dos anos. Uma ação subtil que disseca a intemporalidade natural. É uma obra prévia a Dissecar, de 2019. Na parede, dois volantes de badmínton em perfeito equilíbrio instável, uma fotografia de uma estátua de Pompeia e de um limão sulfatado que revelam a afeição por um elemento natural e outro patrimonial. O extraordinário face ao mundano. Ao fundo, começam-se a amontoar chaleiras que esperam ferver em projetos futuros. Olha-as com vontade de as começar a trabalhar. É curioso que bulir uma chaleira seja também sinónimo de tenaz.
Assim é Dalila — constante, persistente, com iniciativa. Uma artista aberta ao fascínio e ao mesmo tempo com um certo distanciamento inevitável. Às vezes, parece pensar com os olhos, consciente da máxima de W.G. Sebald de que a realidade é sempre diferente de tudo. O trabalho desta artista, nascida em Castelo de Paiva, Portugal, em 1982, consiste em redescobrir nos objetos e materiais o maior número de camadas possível, procurando mergulhar no interior, a partir da convicção de que neles existem histórias ocultas e fascinantes. Recolectar e inventariar é um dos seus trabalhos quase diários. Gonçalves joga com os modos com que apresenta os seus trabalhos. Por vezes, de uma aparência evocativa, paradoxal em relação às suas origens: materiais cheios de experiências e de memória que realçam uma estética própria que, por sua vez, os transmuta em obras de arte. Uma espécie de objets trouvés que, devido à sua história, geram outras narrativas. Decompomo-las nesta conversa.
Bea Espejo (BE) Na exposição Bulir, existem duas chaleiras e dois pássaros que cantam quando a água ferve. Uma peça intitulada Correntes de ar. Como surgiu essa ideia? Qual a sua ancoragem emocional?
Dalila Gonçalves (DG)
Durante o confinamento, passando a maior parte do tempo em casa dos meus pais, pude aperceber-me e deter-me em detalhes que sempre existiram, mas aos quais nunca tinha prestado muita atenção. O som da chaleira que me faz correr do meu quarto para o fogão, o silêncio de alívio após o assobio, a janela com as árvores atrás, os pássaros e o seu canto de fundo... Este cenário vem-me à cabeça sempre que vejo na exposição as chaleiras com os pássaros. De certa forma, remete a esse tipo de conforto quase mágico onde as histórias se cruzam e comunicam em diferentes lugares sem saber muito bem como.
(BE) Um gesto poético que esconde outro muito mais político...
(DG) Posso dizer que é um gesto simbólico e poético e que nisso pode estar a sua força política – atendendo à amplitude da palavra. Perante a impossibilidade de mudar o mundo, de combater as desigualdades, perante o consumismo excessivo, a constante aceleração, esse gesto quase anti-heroico é o máximo que consigo fazer enquanto artista. Interessam-me as nossas memórias, a simplicidade das pequenas coisas, objetos que têm as marcas da sua utilização, as histórias que encerram, objetos prestes a tornarem-se obsoletos, mas que ainda não o são, talvez porque ainda nos lembremos deles e das suas funções.
(BE) Dizem que o canto dos pássaros é um som que pode representar a paz. O mesmo poderia dizer ao pensar numa cozinha com uma chaleira a ferver...
(DG) O ponto de partida para esta instalação são as chaleiras de apito antigas, usadas no dia-a-dia. Mudo-lhes a escala e adapto-as ao espaço da Fundação, à relação entre a janela e o espaço exterior, mas também à relação entre os dois andares unidos por um fosso. De forma simples, posso dizer que convido o espectador a ouvir dois pássaros que “falam um com o outro”. Dois pássaros amarelos, como as chaleiras italianas Alessi, sobem ao nível das árvores que se encontram lá fora. O som e as chaleiras, embora manipuladas, lembram-me essas rotinas de outrora, mas também outros níveis conceptuais de perceção. Interessa-me esse tempo de relação entre o que parece óbvio, simples e reconhecível e, ao mesmo tempo, não tanto. Eu diria que me interessa aquele lugar intermédio, aquele jogo do que é e o que não é, entre o real e a imaginação, essa urgência de fazer ligações precisas e improváveis, diria que tudo isto define o meu trabalho como artista. E dedicar a minha vida a isto é, sem dúvida, um privilégio e, certamente, uma postura política.
(BE) Sempre houve uma grande tradição desse tipo de chaleiras em Portugal, certo?
(DG) Sim, sobretudo antigamente, um tipo de chaleiras com assobios que avisam quando a água ferve. É também um som que me faz lembrar os comboios e as fábricas antigas. O uso do apito de vapor, tal como acontece com a chaleira (apita para nos alertar da urgência de apagar o fogo), serve para chamar, avisar. Foi usado para marcar o momento de entrada e saída do trabalho ou para avisar que um comboio ou uma maquina de carga estava prestes a passar por um determinado local. Alerta para uma mudança. Nasci numa terra de minas de carvão e o som ainda faz parte das minhas memórias e das conversas com a família. Para a produção desta peça, usando os exemplos de chaleiras que tinha em casa, trabalhei com um artesão que faz alambiques e outros objetos em cobre. Na minha aldeia, há uma forte tradição no fabrico destes artefactos. Utilizando este conhecimento na produção de alambiques, produzimos estas chaleiras e o suporte para a água, da forma mais semelhante possível à original, mas respeitando a escala do espaço. É outro dos processos que me interessa muito: o caminho entre a produção artesanal e a industrial, sem rejeitar nenhuma das duas. Na verdade, estou interessada no tempo e nas marcas na matéria que separam as duas.
(BE) Havia muitas dessas figuras de aves em Colunas de ar, uma instalação que fizeste para a Galeria Quadrum – EGEAC – Galerias Municipais, em Lisboa, em 2021, e que parece ter uma relação direta com este projeto em Pontevedra.
(DG) Sim, o que deu origem à instalação apresentada na Galeria Quadrum foi precisamente o fascínio por esse tipo de objetos simples, assobios de barro com forma de animais que encontrei na minha última residência artística na Cidade do México. Quando voltei, continuei a investigar sobre esses assobios e dediquei-me a isso durante a pandemia. Comecei a procurá-los por todo o mundo e a colecioná-los. Encontrei o primeiro no México, imbuída da sensação de ser levada para outra paisagem por alguém que vendia uma simples lembrança. Hoje estes assobios têm uma função quase sempre lúdica, mas historicamente foram usados para caçar, em rituais religiosos ou para assustar inimigos. Podem ser encontrados em contextos geográficos e culturais tão diversos como o Luxemburgo, o Cazaquistão ou Portugal.
(BE) Em Colunas de ar, a ação sonora, a ação de instalação e o objeto são combinados.
(DG) Sim, um pouco. A primeira parte acontece fora da galeria. O espaço expositivo é visto de fora para dentro. A informação visual é reduzida a cabos de metal branco, que servem de suporte, e quatro escadotes de madeira, também brancos. Há intérpretes que tocam ocarinas (com sons de animais), escondidos e camuflados entre os espectadores e em diferentes partes do edifício, fazendo parte de um coro previamente ensaiado pelo músico e realizador Tiago Enrique. Na segunda parte, terminado o som, onze performers, também escondidos, juntam-se um a seguir ao outro. Transportam, em sacos especialmente concebidos para o efeito, mais de 600 ocarinas de argila com formas de animais diferentes, de países dos cinco continentes. Ocarinas que são suspensas por ordem de altura: animais aéreos mais altos, animais terrestres no meio e animais aquáticos e répteis mais perto do chão. Finalmente, sem o som de ocarinas e sem performers, convidam-se os visitantes -que observaram tudo a partir do exterior, através do vidro- a entrar e a vaguear entre estes pequenos animais que engoliram o espaço; para onde quer que vamos e olhemos, lá estão eles, mudos e a olhar para nós.
(BE) No teu trabalho há sempre uma dança entre o tradicional ou artesanal e o produzido em série que, pelo que sei, encobre uma reflexão mais vasta sobre o tempo.
(DG) Sim, sobre como o tempo faz os materiais e o objeto. Mesmo que o artesão produza as mesmas peças, estas nunca serão iguais e isso interessa-me muito. Os objetos estão abertos ao erro, ao fracasso, ao cansaço daquele dia, à alegria, à tristeza ou a uma certa energia. Há um tempo orgânico, mais próximo da natureza. Pelo contrário, o tempo industrial está mais próximo do da cidade, da velocidade, do instantâneo, da simultaneidade. Vou-me movendo entre esses dois mundos, o que, de forma mais ou menos inconsciente, se traduz no meu trabalho. Em algumas obras, exploro-os mais diretamente. Por exemplo, em Desgastar em Pedra, com a ajuda da família e dos amigos, retirei a areia de centenas de lixas Bosch de cor azul. No final, a obra tornou-se um grande tecido azul, preso a partir do teto, com uma pedra azul no chão. Nos vários quadrados de lixa que compõem o trabalho, como uma espécie de manta de retalhos, podem-se ver diferentes temperamentos, forças e energias – múltiplas pessoas naquele processo lento e sofrível de remover a areia do tecido. Através desta ação artesanal simples e literal, a lixa tradicional, que vinculamos a algo industrial sofreu um processo de dissecação. Há nesta obra um exemplo claro desse caminho, do industrial ao orgânico, seguindo o teu raciocínio.
(BE) Isso leva-me a pensar nas muitas camadas de significado que escondem as tuas obras, embora algumas sejam muito literais.
(DG) Posso dizer que quase todas as minhas obras são um processo de dissecação, de descoberta de objetos e materiais em todas as suas camadas até serem vistos por dentro. Falo de uma forma de imersão, de investigação da sua plasticidade, às vezes da sua história, às vezes da sua função, às vezes de tudo ao mesmo tempo. Fascina-me descobrir tudo o que dá forma aos objetos e aos seus materiais e mostrar o que os distingue. Por exemplo, no caso das chaleiras ou da instalação dos assobios, enfatizo o som como parte da obra, é mais uma camada que os caracteriza. Então, ainda que partilhando o mesmo som, quando o objeto está associado a uma forma reconhecível, podemos associar o som à forma, ouvindo um pássaro, um jaguar ou uma coruja... É como se, nesse processo de cirurgiã, quisesse fazer um túnel para cortar o caminho sinuoso de uma montanha para que, no caminho daquela estrada curta, possamos sonhar com a montanha ou, caso esse túnel já exista, me apeteça serpentear a montanha para entender o porquê e em que ponto o túnel foi feito. É neste equilíbrio de dois polos opostos que, de alguma forma, me vou movendo.
(BE) Vejo muitas chaleiras no estúdio à espera de futuros projetos. O que pensas fazer com elas?
(DG) Penso fazer uma espécie de “orquestra de chaleiras”. Com diferentes tipos de chaleiras que tenho vindo a colecionar a minha ideia é fazer alguns tubos metálicos para cada uma delas e adicionar diferentes figuras de animais que vou encontrando e que quero passar a bronze ou a resina. Ainda tenho que lhe dar umas voltas. Como terão diferentes formas e materiais, também os sons serão muito diferentes uns dos outros e podem ser explorados com os tempos de ebulição. Continuo a fazer testes diariamente, mas é em São Paulo que irei concretizar este projeto, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, numa residência e exposição no início do próximo ano.
(BE) Como é essa ideia de recolha como campo de trabalho?
(DG) Na verdade, coleciono histórias. Não sou uma colecionadora, nunca o fui. Não sou organizada e, sempre que tentei ser, perdi o interesse a meio do processo. Mas, no trabalho, sim. Agora consigo perceber porque me fascinam alguns objetos ou materiais e outros não, os pontos de união entre eles. Quando olho para as minhas obras, o que mais gosto é lembrar-me do processo, da história com a pessoa, daquele tempo de viagem, de procura, de mudança, daquele momento de ir ao mercado, de ser reconhecida, de que continuem a guardar-me moedas ou chaleiras, mesmo quando já não trabalho com elas. Houve uma altura em que todos sabiam que moedas procurava. Sinto as pessoas unidas a fazer o trabalho comigo. Essa generosidade é incrível. Acho que esse trabalho colaborativo vem da faculdade, quando fazia desenhos com milho nos espaços da cidade e depois fotografava os pombos a comer e a fazer o meu desenho enquanto o apagavam. Precisava de pessoas que me ajudassem a fazer o desenho rapidamente e a afugentar os pombos, para que o pudesse terminar. E em muitas outras ações que fazia no exterior. Sempre precisei de pessoas que me ajudassem.
(BE) Também antes, em 2020, trabalhaste com o som em Atrapasonidos, no México. O que te interessa exatamente dessa história sonora dos objetos?
(DG) Essa instalação começou no Brasil, na residência Pivô, embora de uma forma diferente, e foi concretizada num vídeo intitulado Concerto. Pouco depois, no México, usei as mesmas lixas, gastas em carpintarias de Portugal e do Brasil, para construir a instalação Atrapasonidos. O nome vem de “atrapanovios”, um brinquedo feito de palma que é comum vender-se lá. Com um artesão fiz umas réplicas com escalas específicas e usei-as para segurar garras de animais em metal com uma bola de vidro, que formavam parte da base dos bancos dos pianistas (especialmente os utilizados nos Estados Unidos) e a outros artefactos que encontrei, como peixes ou pássaros. Por baixo destes objetos, coloquei uns mecanismos de rotação simples, escondidos em bases de madeira ou cerâmica, que faziam girar as lixas como discos de vinil ou água como espelhos. Na verdade, trata-se de um conjunto de diferentes tempos e trabalhos. Há também outro trabalho, da série Playing with Time, 840 cubos de giz para tacos de bilhar...
(BE) Costumas trabalhar com vários projetos ao mesmo tempo?
(DG) Sim, sou um pouco caótica, pelo menos num determinando momento do processo, porque estou interessada em várias coisas ao mesmo tempo. Creio que, devido à natureza do meu trabalho, ao tempo que muitas vezes preciso para encontrar as coisas, ao tempo necessário para concretizar as peças, é quase obrigatório que trabalhe em vários projetos em simultâneo. Por um lado, pelo meu temperamento, por outro, porque tenho de produzir obras para diferentes exposições, de outra maneira seria impossível.
(BE) Falas do projeto Playing with Time, onde refletes de uma forma muito específica sobre a passagem do tempo e os vestígios que este gera. Penso nas bolas brancas de bilhar que amarelaram ao longo dos anos e que ordenas como um pantone, das mais claras às mais escuras. O que é para ti o tempo? É metáfora de quê?
(DG) Na minha prática, o tempo tem significados diferentes. Às vezes, uso-o como ferramenta ou como medium, ou seja, a passagem do tempo por si só já gera a obra, como nessa instalação das bolas de bilhar a que te referes. Uso-o também como metáfora quando, por exemplo, falo da perda de tempo ou da ideia de tempo associada ao dinheiro, ou quando olho para objetos que estão prestes a caducar, a ficar em desuso porque a passagem do tempo os tornou obsoletos. Penso num CD cheio de informação, nos selos, nas canetas de pena, nos arquivos de papel... Chamaria a isso tempo como metáfora, quando o evoco para falar emocionalmente, esse ritmo absurdo antinatural do nosso quotidiano. Um ritmo que também partilho.
(BE) O teu trabalho mudou muito ao longo dos anos?
(DG) Desde o início que tenho vindo a trabalhar com objetos, mas descontextualizando a sua leitura. Esse é o ponto de partida, embora a forma de o fazer tenha vindo a mudar. Em geral, existe um processo de reorganização poética de uma prática de recolha, seja por inventário de materiais do dia-a-dia (moedas, canetas, lápis...), seja pela sua singularidade que os transforma em objetos únicos. Há alturas em que repenso esse processo. Outras, vejo-o como um jogo experimental onde os ponho em diálogo com outros objetos, construindo narrativas que podem ser documentais ou ficcionais. Ou seja, numa prática com um forte lado processual, uso vídeo, fotografia, cerâmica, escultura e instalação para abordar diferentes linhas de interesse: a ideia de tempo como meio e metáfora, o resgate, o obsoleto, o percurso experiencial entre a indústria e o orgânico, entre a produção em massa e a produção artesanal.
(BE) São os objetos que te encontram ou és tu que os encontras?
(DG) Não sei bem. De uma forma mais racional, diria que sou eu que os encontro porque me abro ao caminho da procura, mas também é verdade que muitas vezes só encontro coisas quando não as procuro. Há várias fases dentro do processo de recolha. Encontrar um objeto ou um material, e mesmo uma situação que me pode levar a algo, é um momento muito especial, embora normalmente naquela altura não saiba o que irei fazer com ele. Há alturas em que essa descoberta singular é suficiente, mas, noutras, o processo pode levar-me a passar meses ou anos à procura de uma forma de lhe dar sentido.
(BE) É óbvio que trabalhas com várias ideias ao mesmo tempo. Quais são os materiais de trabalho, essas ideias, que estão em cima da mesa e com as quais trabalhas simultaneamente?
(DG) São materiais à minha volta. Sou um pouco viciada em viagens e caminhadas, por isso é grande a amplitude da expressão “à volta”. Independentemente dos objetos ou materiais que tenha, outra questão que ocupa grande parte do processo é como encontrar o melhor meio para passar a uma ideia ou valorizar o material que tenho, perceber se é a fotografia, a cerâmica, o vídeo ou a instalação. É nesta descoberta que reside o sucesso do trabalho. Um sucesso próprio, claro. Por isso, quando estou a explorar uma ideia, normalmente rodeio-me de objetos da mesma família ou que, de alguma forma, relaciono. Embora depois, e na maior parte das vezes, não os utilize.
(BE) Neste momento, há muitas cabaças no atelier...
(DG) Estou a trabalhar com as cabaças para uma instalação. Esta ideia já deu muitas voltas. Estava muito focada no som associado aos instrumentos musicais feitos com elas ou na sua capacidade para transportar líquidos... por isso me rodeei de instrumentos, sons, brinquedos, mas finalmente, resultaram em peças totalmente silenciosas.
(BE) Costumas dizer que não tens muita facilidade com a linguagem, mas há algo dela que me interessa muito em relação ao teu trabalho. Tens vindo a utilizá-la da forma mais precisa possível para que os detalhes sejam concretizados e alcancem um significado. O uso das palavras pode fazer soar todas as notas, manifestar todos os registos. Então, a imagem resultante, como acontece com um poema, organiza a história, leva a uma série de associações complexas.
(DG) Na faculdade pedem-nos que expliquemos tudo e espero que, com a idade, me possa explicar cada vez menos, seguir apenas uma inteligência intuitiva. Às vezes, penso que há algo muito visceral, que faço só porque sim, sem saber bem o motivo. Outras vezes, e como seres contraditórios que somos, faço o contrário.
(BE) Acreditas na rotina do trabalho? Isso leva-te a algum lugar interessante?
(DG) Há alguma rotina no processo e pensamento. Deixo notas áudio no meu telemóvel, dou passeios, viajo sempre que posso, devo dizer-te que grande parte do meu trabalho não acontece no meu atelier. Às vezes, o trabalho no atelier é algo forçado e doloroso, embora eu goste de experimentar e trabalhar com os materiais, a incerteza das decisões não é fácil de enfrentar. Posso trabalhar em qualquer lugar, especialmente no processo, mas tenho tendência de voltar à minha rede de afetos. Há uma logística emocional e prática criada ao longo do tempo que facilita muito na hora de concretizar. Isso é cada vez mais claro para mim.
(BE) O teu trabalho mudou quando entrou no mercado?
(DG) Vendo à distância, sim. Mas não sei se tem a ver com o mercado ou com a experiência, e também não me passa pela cabeça fazer algo que seja mais comercial. O que existem são algumas estratégias para escolher o melhor trabalho para um determinado contexto. Tentar apresentar algumas obras em contextos que não são os de uma feira de arte, pensar, dentro das obras que faço, quais são as melhores para serem vistas num espaço ou noutro.
(BE) Uma das tuas obras mais conhecidas é Kneaded Memory (Memória Amassada), produzida para a praça em Blankerberge, na Bélgica. Objetos que se assemelham a rochas, figuras de naufrágios de diferentes formas e tamanhos. Esta obra tornou-te muito conhecida e fez com que o mercado abraçasse o teu trabalho.
(DG) Era muito jovem quando fiz essa obra, tinha 28 anos. Fui convidada a participar numa Trienal na Bélgica. Tinham visto uma obra de fotografia onde enrugava fotografias de fachadas de edifícios vagos no Porto e depois, pelo enquadramento e luz, pareciam pedras. Na verdade, eram pedras de lixo. Interessavam-lhes que eu explorasse as relações de Portugal e Blankerberge. Os portugueses trouxeram azulejos de Antuérpia, em troca de sal. Quem organizava a trienal queria que a obra se concentrasse nas transformações sofridas pela cidade, na diminuição dos azulejos das fachadas e nas novas construções de betão naquela zona costeira. Mas as essas peças eram feitas de papel. Não sei bem como, mas houve um equívoco. E foi a partir desse equívoco que surgiu Memória Amassada. Concordei em fazer algo em cerâmica, sem nunca ter feito nada com esse material. No final, foquei-me numa praça da cidade rodeada de casas que ainda tinham alguns azulejos no chão das entradas. Com esses padrões, fiz esse tipo de fachadas de betão enrugadas, algumas com azulejos e outras apenas de betão. Acho que as peças estiveram lá durante um ano. E, sim, a visibilidade foi muito grande. Passados alguns anos, as peças regressaram a Portugal e a Câmara Municipal do Porto comprou-me três das dezanove e agora estão em frente à estação de comboios da cidade. O mais curioso é que descobrimos que os padrões belgas também existem no arquivo dos azulejos do Porto, por isso comecei a ver as peças como pedras que se movem entre espaços e histórias. Essa relação comercial do século XVII transformou-se noutra inesperada relação entre o passado e o presente, entre a memória, a recordação e o esquecimento.