Um primeiro e mais distanciado olhar não deixa dúvidas, é mesmo um perfil de montanhas que aparece claramente desenhado na parede. Uma espécie de tira constrói a percepção de um contorno montanhoso numa parede qualquer de um qualquer espaço expositivo. A parede divide-se, então, em duas partes: uma, interior (inferior) e parte constituinte da percepção das montanhas e a outra, exterior (superior), apartada pela descontinuidade provocada pela presença da tira. A tira afirma o espaço fronteiriço e, contudo, não é um significante vazio, bem pelo contrário, é nela que se corporizam as questões essenciais. É, por isso, determinante uma aproximação minuciosa à tira. Um posicionamento que permita passar a um outro nível de significação; para uma leitura mais aprofundada que remeta a ideia genérica de tira para a superfície e se declare, assim, como uma outra coisa que perde a condição de totalidade para se organizar em torno da ideia constituinte de grupo, ou seja, o agrupar voluntário de constituintes individualizados.
A mancha cromática que afirma a divisão na parede é, afinal, um grupo alargado de elementos que se repetem. Vulgares lápis de grafite utilizados por amigos e alunos das escolas da região da artista. E, contudo, esta constatação muda tudo, radicalmente. A peça não é, afinal, nenhum comentário estetizante a uma espécie de pitoresco actualizado e não quer ser, também, de forma alguma, portadora de um qualquer diálogo sobre uma (im)possível actualização da ideia de sublime.
O conjunto alargado de lápis que se encontram dispostos horizontalmente na parede remetem para outras dimensões distantes do mundo higienizado da estética e integram no seu âmago uma relação de extrema proximidade com a realidade social de onde provêm acrescentando, desta forma, uma espessura política à obra, que merece reflexão.
Estamos perante uma nova possibilidade pós-duchampiana de introdução poética de objectos no interior do espaço expositivo. Agora, ao contrário do ready-made original, estes não são anestesiados de gosto, pelo contrário, trazem consigo, qual marca genética, toda uma realidade adversa que se manifesta aqui por inteiro. A silhueta da montanha revela-se, afinal, uma linha constituinte de uma realidade recheada de problemas que a precariedade dos próprios objectos escolhidos pela artista, pontuam de forma brilhante. Utilizo aqui o termo precariedade de forma deliberada e de acordo com o uso que dele faz Thomas Hirschhorn, diz o artista suíço: “My work isn’t ephemeral, it’s precarious. It’s humans who decide and determine how long the work lasts. The term ephemeral comes from nature, but nature doesn’t make decisions”. A peça da Dalila Gonçalves corporiza idealmente (e visualmente) esta diferenciação. A sua necessária envolvência com a realidade coloca-a no centro das discussões contemporâneas sobre a pertinência das práticas artísticas que querem incorporar no seu fazer essa condição essencial.
Aos artistas é hoje, muitas vezes, exigida uma atitude responsável perante a realidade. É conhecida a imensa discussão sobre as pretensas vantagens da autoria colectiva sobre a individual, sobre as potencialidades de uma arte participativa, etc. A tudo isto a artista e a sua peça respondem de forma clara. Desde logo porque a visualização da totalidade da peça remete-nos fisicamente para uma distância que afirma a exterioridade: aquela que o observador experimenta quando consegue ver o perfil completo de um correr de montanhas, aqui, naturalmente, como possibilidade metafórica. Ora, essa distância tem sido sempre fundamental para que as obras sobrevivam e possam, a partir desse lugar distanciado, olhar criticamente a realidade onde se inserem. E, contudo, longe de pretensões de responsabilização que lhes são estranhas. Diria, com Adorno, que a arte é, em qualquer caso, irresponsável e sem essa condição constituinte não é arte. Uma irresponsabilidade que, naturalmente, se afirma por oposição à exemplar e muito actual cidadania neo-liberal responsável.
Toda a envolvência da obra conduz a procedimentos que remetem inteligentemente para essa condição de distância estratégica (Foster) sem, no entanto, cair no isolamento. Um olhar aprofundado revela toda uma vivência da comunidade e com a comunidade que a artista potencia: os lápis são, afinal uma excelente alegoria — é de ruínas que aqui falamos, de facto — para uma realidade que se torna agora visível e apta a ser partilhada. Uma realidade precária e diferenciada e, por isso, real — os diferentes níveis de utilização dos lápis, desde aqueles que se encontram quase intactos até aos que foram intensamente utilizados até ao limite afirmam, de novo, uma carga alegórica intensa.
Por isso as montanhas presentes na obra são, sim, montanhas mas de outro género, são montanhas de problemas sociais; são montanhas de precariedade; são montanhas de amizade e cumplicidades várias; são montanhas de experimentação artística; são montanhas do que quisermos. Afinal é a essa miríade de possibilidades que a obra se dá e, ao mesmo tempo, não se dá. Dá, somente, a quem quer. Talvez no interior das montanhas que aqui visualizamos se encontre a tal cripta de que fala Mario Perniola e que à sua porta esteja a artista com a chave.
Mas quem entrará?
Um primeiro e mais distanciado olhar não deixa dúvidas, é mesmo um perfil de montanhas que aparece claramente desenhado na parede. Uma espécie de tira constrói a percepção de um contorno montanhoso numa parede qualquer de um qualquer espaço expositivo. A parede divide-se, então, em duas partes: uma, interior (inferior) e parte constituinte da percepção das montanhas e a outra, exterior (superior), apartada pela descontinuidade provocada pela presença da tira. A tira afirma o espaço fronteiriço e, contudo, não é um significante vazio, bem pelo contrário, é nela que se corporizam as questões essenciais. É, por isso, determinante uma aproximação minuciosa à tira. Um posicionamento que permita passar a um outro nível de significação; para uma leitura mais aprofundada que remeta a ideia genérica de tira para a superfície e se declare, assim, como uma outra coisa que perde a condição de totalidade para se organizar em torno da ideia constituinte de grupo, ou seja, o agrupar voluntário de constituintes individualizados.
A mancha cromática que afirma a divisão na parede é, afinal, um grupo alargado de elementos que se repetem. Vulgares lápis de grafite utilizados por amigos e alunos das escolas da região da artista. E, contudo, esta constatação muda tudo, radicalmente. A peça não é, afinal, nenhum comentário estetizante a uma espécie de pitoresco actualizado e não quer ser, também, de forma alguma, portadora de um qualquer diálogo sobre uma (im)possível actualização da ideia de sublime.
O conjunto alargado de lápis que se encontram dispostos horizontalmente na parede remetem para outras dimensões distantes do mundo higienizado da estética e integram no seu âmago uma relação de extrema proximidade com a realidade social de onde provêm acrescentando, desta forma, uma espessura política à obra, que merece reflexão.
Estamos perante uma nova possibilidade pós-duchampiana de introdução poética de objectos no interior do espaço expositivo. Agora, ao contrário do ready-made original, estes não são anestesiados de gosto, pelo contrário, trazem consigo, qual marca genética, toda uma realidade adversa que se manifesta aqui por inteiro. A silhueta da montanha revela-se, afinal, uma linha constituinte de uma realidade recheada de problemas que a precariedade dos próprios objectos escolhidos pela artista, pontuam de forma brilhante. Utilizo aqui o termo precariedade de forma deliberada e de acordo com o uso que dele faz Thomas Hirschhorn, diz o artista suíço: “My work isn’t ephemeral, it’s precarious. It’s humans who decide and determine how long the work lasts. The term ephemeral comes from nature, but nature doesn’t make decisions”. A peça da Dalila Gonçalves corporiza idealmente (e visualmente) esta diferenciação. A sua necessária envolvência com a realidade coloca-a no centro das discussões contemporâneas sobre a pertinência das práticas artísticas que querem incorporar no seu fazer essa condição essencial.
Aos artistas é hoje, muitas vezes, exigida uma atitude responsável perante a realidade. É conhecida a imensa discussão sobre as pretensas vantagens da autoria colectiva sobre a individual, sobre as potencialidades de uma arte participativa, etc. A tudo isto a artista e a sua peça respondem de forma clara. Desde logo porque a visualização da totalidade da peça remete-nos fisicamente para uma distância que afirma a exterioridade: aquela que o observador experimenta quando consegue ver o perfil completo de um correr de montanhas, aqui, naturalmente, como possibilidade metafórica. Ora, essa distância tem sido sempre fundamental para que as obras sobrevivam e possam, a partir desse lugar distanciado, olhar criticamente a realidade onde se inserem. E, contudo, longe de pretensões de responsabilização que lhes são estranhas. Diria, com Adorno, que a arte é, em qualquer caso, irresponsável e sem essa condição constituinte não é arte. Uma irresponsabilidade que, naturalmente, se afirma por oposição à exemplar e muito actual cidadania neo-liberal responsável.
Toda a envolvência da obra conduz a procedimentos que remetem inteligentemente para essa condição de distância estratégica (Foster) sem, no entanto, cair no isolamento. Um olhar aprofundado revela toda uma vivência da comunidade e com a comunidade que a artista potencia: os lápis são, afinal uma excelente alegoria — é de ruínas que aqui falamos, de facto — para uma realidade que se torna agora visível e apta a ser partilhada. Uma realidade precária e diferenciada e, por isso, real — os diferentes níveis de utilização dos lápis, desde aqueles que se encontram quase intactos até aos que foram intensamente utilizados até ao limite afirmam, de novo, uma carga alegórica intensa.
Por isso as montanhas presentes na obra são, sim, montanhas mas de outro género, são montanhas de problemas sociais; são montanhas de precariedade; são montanhas de amizade e cumplicidades várias; são montanhas de experimentação artística; são montanhas do que quisermos. Afinal é a essa miríade de possibilidades que a obra se dá e, ao mesmo tempo, não se dá. Dá, somente, a quem quer. Talvez no interior das montanhas que aqui visualizamos se encontre a tal cripta de que fala Mario Perniola e que à sua porta esteja a artista com a chave.
Mas quem entrará?