“O vazio desenhava desde sempre a forma do teu rosto Todas as coisas serviram para nos ensinar
A ardente perfeição da tua ausência”
Sophia de Mello Breyner
Há, no trabalho de Dalila Gonçalves, uma nostalgia disfarçada de ironia. Será difícil, porventura, pegar no tempo e dar-lhe um rosto. Diria que foi nos círculos feitos de milho que esse desenho começou. As pombas vinham, por fome ou gula, comer o cereal que a artista dispusera à sua maneira e aterravam numa espécie de banquete encenado que mais tarde se acabaria por transformar em estilhaços de um desenho devorado. As cortinas vermelhas caíam e a efemeridade do momento e dos vários actos era registada. Fosse pão, areia ou pipocas, havia quase sempre uma provocação à própria matéria: esta servia de isco para chamar ao palco a personagem principal - o tempo, com e sem maiúscula - que chegava para a fazer desaparecer. Talvez esta seja a fase mais teatral no percurso de Dalila ainda que a ideia de encenação se tenha mantido sempre presente.
Tal como o ícone universal do Teatro nos sugere, também na sua obra, ao lado de uma máscara que sorri há outra que vira a boca ao contrário. Isto será mais tarde evidente em séries como Arquivos de erva ou Observatório. Quanto tempo leva um pedaço de relva a crescer e quem se irá sentar numa cadeira a observar este espectáculo? Aquilo que desaparecia ou apodrecia, agora cresce. Primeiro não há qualquer audiência na plateia (Teatros de erva #1) e existe a solidão de um espectáculo sem observadores. Mais tarde conseguimos vislumbrar as costas de algumas pessoas sentadas (Teatros de erva #2 e #3) mas já não há palco, apenas um relvado e dois focos. Solta-se uma gargalhada. E o sentido do ridículo convive a par com a noção do infnito.
Continua o gozo com Memórias de papel: que património é este que se amassa como uma folha de papel e que se pode transformar em depuradas composições fotográfcas? Há memórias duras como o gesso e redes mais fnas que o papel.
Por vezes parece que a artista nos tenta convencer que nada dura para sempre; por outras, há uma voz de inconformidade, paradoxalmente nostálgica, que tenta organizar esse nada. O que resta. É que talvez estes pequeníssimos nadas signifquem tudo o que já se viveu e se conhece. Bolas de bilhar, giz azul, canetas, lixas, lápis. A Dalila faz-nos crer que é possível, encenando o desgaste, instaurar alguma ordem ao presente. Há uma aparente tentativa de humanizar o Tempo. Arrisco a dizer que é em Sustenido, obra composta por 7,40 metros de ponteiros de relógio não sincronizados dispostos horizontalmente numa parede branca, onde se encontra a súmula da obra desta exímia encenadora. Os ponteiros trabalham meticulosamente uns ao lado dos outros sem referenciais. Não há números, pessoas, indicações geográfcas, apenas o som da fna maquinaria e o silêncio de um Tempo auto-imune. Ainda assim, parece que o vazio consegue desenhar a forma de um rosto e que “todas as coisas serviram para nos ensinar/a ardente perfeição da tua ausência”.
“O vazio desenhava desde sempre a forma do teu rosto Todas as coisas serviram para nos ensinar
A ardente perfeição da tua ausência”
Sophia de Mello Breyner
Há, no trabalho de Dalila Gonçalves, uma nostalgia disfarçada de ironia. Será difícil, porventura, pegar no tempo e dar-lhe um rosto. Diria que foi nos círculos feitos de milho que esse desenho começou. As pombas vinham, por fome ou gula, comer o cereal que a artista dispusera à sua maneira e aterravam numa espécie de banquete encenado que mais tarde se acabaria por transformar em estilhaços de um desenho devorado. As cortinas vermelhas caíam e a efemeridade do momento e dos vários actos era registada. Fosse pão, areia ou pipocas, havia quase sempre uma provocação à própria matéria: esta servia de isco para chamar ao palco a personagem principal - o tempo, com e sem maiúscula - que chegava para a fazer desaparecer. Talvez esta seja a fase mais teatral no percurso de Dalila ainda que a ideia de encenação se tenha mantido sempre presente.
Tal como o ícone universal do Teatro nos sugere, também na sua obra, ao lado de uma máscara que sorri há outra que vira a boca ao contrário. Isto será mais tarde evidente em séries como Arquivos de erva ou Observatório. Quanto tempo leva um pedaço de relva a crescer e quem se irá sentar numa cadeira a observar este espectáculo? Aquilo que desaparecia ou apodrecia, agora cresce. Primeiro não há qualquer audiência na plateia (Teatros de erva #1) e existe a solidão de um espectáculo sem observadores. Mais tarde conseguimos vislumbrar as costas de algumas pessoas sentadas (Teatros de erva #2 e #3) mas já não há palco, apenas um relvado e dois focos. Solta-se uma gargalhada. E o sentido do ridículo convive a par com a noção do infnito.
Continua o gozo com Memórias de papel: que património é este que se amassa como uma folha de papel e que se pode transformar em depuradas composições fotográfcas? Há memórias duras como o gesso e redes mais fnas que o papel.
Por vezes parece que a artista nos tenta convencer que nada dura para sempre; por outras, há uma voz de inconformidade, paradoxalmente nostálgica, que tenta organizar esse nada. O que resta. É que talvez estes pequeníssimos nadas signifquem tudo o que já se viveu e se conhece. Bolas de bilhar, giz azul, canetas, lixas, lápis. A Dalila faz-nos crer que é possível, encenando o desgaste, instaurar alguma ordem ao presente. Há uma aparente tentativa de humanizar o Tempo. Arrisco a dizer que é em Sustenido, obra composta por 7,40 metros de ponteiros de relógio não sincronizados dispostos horizontalmente numa parede branca, onde se encontra a súmula da obra desta exímia encenadora. Os ponteiros trabalham meticulosamente uns ao lado dos outros sem referenciais. Não há números, pessoas, indicações geográfcas, apenas o som da fna maquinaria e o silêncio de um Tempo auto-imune. Ainda assim, parece que o vazio consegue desenhar a forma de um rosto e que “todas as coisas serviram para nos ensinar/a ardente perfeição da tua ausência”.