ANA ROMAN
(Folha de sala - "Terra de Esqueletos". Projecto Fidalga São Paulo)
Em terra de esqueleto…
… toda fratura é exposta
Ana Roman
Há um humor seco nesse ditado, como se ele dissesse: em um mundo reduzido a ossos, não há nada para ocultar. É um lembrete de que, desprovidas de pele e ornamentos, as estruturas se revelam em sua crueza. A frase foi escolhida para intitular a mostra de Dalila Gonçalves no Projeto Fidalga que apresenta um aglomerado de cabaças acopladas, forjando uma espécie de esqueleto orgânico, um corpo-partitura em que as junções entre as peças evidenciam as articulações e também as fraturas — metáforas de passagens, reorganizações e rearranjos de matéria.
A enunciação que nomeia a exposição sugere também outro modo de ser, um portal que se abre aos nossos ouvidos internos e que, por meio do exercício de imaginar, escutar e sonhar, nos convida a repensar o que entendemos por natureza, memória e possibilidade. O que pode ser uma escultura, um corpo, um objeto, um som que paira no vazio? Dalila Gonçalves lida com essas questões, rachando a superfície do visível e do audível, permitindo que luz e voz surjam nesses espaços fraturados.
O território escultórico criado pela artista é marcado por um conjunto de formas e estruturas que parecem ter sido esvaziadas de suas camadas originais, deixando à vista uma espécie de ossatura da matéria. Não há aqui uma busca pela reprodução de algo preexistente, mas sim um exercício de reconfiguração: cabaças, cerâmicas, diagramas técnicos e objetos cotidianos são deslocados de seu contexto habitual, recombinados e justapostos de maneiras inesperadas. Uma cabaça alongada pode evocar um instrumento acústico, enquanto relevos de porcelana sugerem fórmulas para mapear forças invisíveis. Uma bola de basquete, desgastada pelo tempo, surge como um pequeno globo terrestre, e um caracol, ao percorrê-la, reinventa a própria ideia de mapa. Assim, a artista mostra que as coisas não são apenas o que parecem, mas o que podem vir a ser, criando um campo no qual dentro e fora, orgânico e inorgânico, natural e construído se tornam fluidos.
Em um território em que os corpos se insinuam como esqueletos, cada fratura surge nua, à mostra, sem nenhuma camada de pele nem músculo que lhe possa disfarçar o desajuste. Ao adentrar o espaço expositivo, encontramos corpos que não se assemelham aos seres vivos aos quais estamos habituados a atribuir aquela anatomia. São estruturas orgânicas que pendem e se equilibram, erguendo-se como esqueletos estranhos. Essas carcaças vegetais lembram ossadas expostas em vitrines de museus de história natural, mas aqui o gesto da artista é outro: enquanto os museus tradicionais silenciam os restos, exibindo-os como testemunhos passivos de uma vida extinta, Gonçalves evoca um canto mudo, uma voz latente que sussurra por entre as concavidades das peças, trazendo à tona a memória de algo que já foi semente e que busca, no presente, reconfigurar seu sentido.
Ao olhar os trabalhos, a crítica aos museus de história natural é, para mim, inevitável. Nessas instituições, o passado aparece organizado, catalogado, petrificado; as formas do mundo se submetem à lógica taxonômica, à hierarquia do conhecimento humano. Mas, na prática artística de Dalila Gonçalves, em vez de um arquivo inerte, temos próteses orgânicas, mecânicas, sonoras ou silenciosas, corpos construídos que não nos devolvem respostas prontas. Diferentemente das vitrines imutáveis, aqui as cabaças — essas cascas vazias, outrora promessas de vida — ganham voz, ou ao menos a sugestão de um canto subterrâneo.
Nesse contexto, vale lembrar a ecdise, o processo no qual insetos como a cigarra abandonam seu exoesqueleto para crescer, liberando-se de uma carapaça vazia e iniciando um canto que marca a transição entre o corpo antigo e o estado renovado. Considerou-se, inclusive, batizar a exposição com esse nome, sublinhando a ideia de desprendimento, metamorfose e a capacidade de pressentir o que pode surgir. Como esqueletos de cigarra, que mantêm a forma do inseto mas não sua carne, as obras de Gonçalves parecem vibrar com um som espectral. Há nelas o eco do fonoceno, conceito sugerido por Vinciane Despret e Donna Haraway, no qual o convite é à escuta ativa do entorno, do ruído ambiente, do coro polifônico de seres e matérias que compõem o planeta. Assim, a artista abre um canal sensível que ultrapassa o olhar, engaja o ouvido interno dos labirintos e cristais da percepção e nos conecta a uma “outridade” intensamente presente, ainda que invisível.
Para pensar o que é vida — ou o que pode ser diante dessas ossaturas vegetais —, podemos recorrer a Benjamin Labatut. Em A Pedra da Loucura, ele fala da relação entre verdade, loucura e realidade, evocando a teoria do caos de Edward Lorenz. Uma pequena mudança no início de um sistema complexo pode gerar consequências enormes, imprevisíveis. Da mesma forma, um mínimo gesto no corte da cabaça ou na união de um objeto com outro altera radicalmente a forma, o som imaginado e a imagem que criamos. O que parecia estável — um fruto, uma semente, a própria ideia de corpo — torna-se parte de um exercício de liberdade: ossatura vazia que pode ser também alto-falante, trombeta muda, estetoscópio primordial pronto para ouvir o subterrâneo do mundo.
Dalila Gonçalves lembra que a experiência não se limita à utilidade original dos objetos nem às classificações institucionais. Como artistas que constroem acervos a partir de mercados populares e feiras de antiguidades, ela coleta, disseca e remonta, suspende funções e recria sentidos, permitindo que as coisas desaprendam suas formas habituais. Ao justapor cabaças, unir extremidades, esculpir ocos e túneis, amplia as possibilidades do que chamamos de escultura e desafia o que entendemos como vida. A cabaça, antes fruto, torna-se prótese, amplificador, ressonância de uma ausência que fala.
Nessa paisagem, a prática artística desloca-se do mero objeto para uma ecologia sensível da matéria. É um exercício de escuta, um “devir-coisa” que nos abre para a multiplicidade de vozes presentes no mundo. A fratura exposta feita nas cabaças não é um erro; são estruturas ósseas propositais e poéticas: uma chamada para o acolhimento do indeterminado, do inaudito. Assim, Dalila Gonçalves costura uma relação íntima entre som e silêncio, corpo e oco, fratura e reestruturação, convidando-nos a habitar um mundo em que a falha deixa de ser um defeito e passa a ser a semente de novos futuros.
Ana Roman
ANA ROMAN
(Folha de sala - "Terra de Esqueletos". Projecto Fidalga São Paulo)
Em terra de esqueleto…
… toda fratura é exposta
Ana Roman
Há um humor seco nesse ditado, como se ele dissesse: em um mundo reduzido a ossos, não há nada para ocultar. É um lembrete de que, desprovidas de pele e ornamentos, as estruturas se revelam em sua crueza. A frase foi escolhida para intitular a mostra de Dalila Gonçalves no Projeto Fidalga que apresenta um aglomerado de cabaças acopladas, forjando uma espécie de esqueleto orgânico, um corpo-partitura em que as junções entre as peças evidenciam as articulações e também as fraturas — metáforas de passagens, reorganizações e rearranjos de matéria.
A enunciação que nomeia a exposição sugere também outro modo de ser, um portal que se abre aos nossos ouvidos internos e que, por meio do exercício de imaginar, escutar e sonhar, nos convida a repensar o que entendemos por natureza, memória e possibilidade. O que pode ser uma escultura, um corpo, um objeto, um som que paira no vazio? Dalila Gonçalves lida com essas questões, rachando a superfície do visível e do audível, permitindo que luz e voz surjam nesses espaços fraturados.
O território escultórico criado pela artista é marcado por um conjunto de formas e estruturas que parecem ter sido esvaziadas de suas camadas originais, deixando à vista uma espécie de ossatura da matéria. Não há aqui uma busca pela reprodução de algo preexistente, mas sim um exercício de reconfiguração: cabaças, cerâmicas, diagramas técnicos e objetos cotidianos são deslocados de seu contexto habitual, recombinados e justapostos de maneiras inesperadas. Uma cabaça alongada pode evocar um instrumento acústico, enquanto relevos de porcelana sugerem fórmulas para mapear forças invisíveis. Uma bola de basquete, desgastada pelo tempo, surge como um pequeno globo terrestre, e um caracol, ao percorrê-la, reinventa a própria ideia de mapa. Assim, a artista mostra que as coisas não são apenas o que parecem, mas o que podem vir a ser, criando um campo no qual dentro e fora, orgânico e inorgânico, natural e construído se tornam fluidos.
Em um território em que os corpos se insinuam como esqueletos, cada fratura surge nua, à mostra, sem nenhuma camada de pele nem músculo que lhe possa disfarçar o desajuste. Ao adentrar o espaço expositivo, encontramos corpos que não se assemelham aos seres vivos aos quais estamos habituados a atribuir aquela anatomia. São estruturas orgânicas que pendem e se equilibram, erguendo-se como esqueletos estranhos. Essas carcaças vegetais lembram ossadas expostas em vitrines de museus de história natural, mas aqui o gesto da artista é outro: enquanto os museus tradicionais silenciam os restos, exibindo-os como testemunhos passivos de uma vida extinta, Gonçalves evoca um canto mudo, uma voz latente que sussurra por entre as concavidades das peças, trazendo à tona a memória de algo que já foi semente e que busca, no presente, reconfigurar seu sentido.
Ao olhar os trabalhos, a crítica aos museus de história natural é, para mim, inevitável. Nessas instituições, o passado aparece organizado, catalogado, petrificado; as formas do mundo se submetem à lógica taxonômica, à hierarquia do conhecimento humano. Mas, na prática artística de Dalila Gonçalves, em vez de um arquivo inerte, temos próteses orgânicas, mecânicas, sonoras ou silenciosas, corpos construídos que não nos devolvem respostas prontas. Diferentemente das vitrines imutáveis, aqui as cabaças — essas cascas vazias, outrora promessas de vida — ganham voz, ou ao menos a sugestão de um canto subterrâneo.
Nesse contexto, vale lembrar a ecdise, o processo no qual insetos como a cigarra abandonam seu exoesqueleto para crescer, liberando-se de uma carapaça vazia e iniciando um canto que marca a transição entre o corpo antigo e o estado renovado. Considerou-se, inclusive, batizar a exposição com esse nome, sublinhando a ideia de desprendimento, metamorfose e a capacidade de pressentir o que pode surgir. Como esqueletos de cigarra, que mantêm a forma do inseto mas não sua carne, as obras de Gonçalves parecem vibrar com um som espectral. Há nelas o eco do fonoceno, conceito sugerido por Vinciane Despret e Donna Haraway, no qual o convite é à escuta ativa do entorno, do ruído ambiente, do coro polifônico de seres e matérias que compõem o planeta. Assim, a artista abre um canal sensível que ultrapassa o olhar, engaja o ouvido interno dos labirintos e cristais da percepção e nos conecta a uma “outridade” intensamente presente, ainda que invisível.
Para pensar o que é vida — ou o que pode ser diante dessas ossaturas vegetais —, podemos recorrer a Benjamin Labatut. Em A Pedra da Loucura, ele fala da relação entre verdade, loucura e realidade, evocando a teoria do caos de Edward Lorenz. Uma pequena mudança no início de um sistema complexo pode gerar consequências enormes, imprevisíveis. Da mesma forma, um mínimo gesto no corte da cabaça ou na união de um objeto com outro altera radicalmente a forma, o som imaginado e a imagem que criamos. O que parecia estável — um fruto, uma semente, a própria ideia de corpo — torna-se parte de um exercício de liberdade: ossatura vazia que pode ser também alto-falante, trombeta muda, estetoscópio primordial pronto para ouvir o subterrâneo do mundo.
Dalila Gonçalves lembra que a experiência não se limita à utilidade original dos objetos nem às classificações institucionais. Como artistas que constroem acervos a partir de mercados populares e feiras de antiguidades, ela coleta, disseca e remonta, suspende funções e recria sentidos, permitindo que as coisas desaprendam suas formas habituais. Ao justapor cabaças, unir extremidades, esculpir ocos e túneis, amplia as possibilidades do que chamamos de escultura e desafia o que entendemos como vida. A cabaça, antes fruto, torna-se prótese, amplificador, ressonância de uma ausência que fala.
Nessa paisagem, a prática artística desloca-se do mero objeto para uma ecologia sensível da matéria. É um exercício de escuta, um “devir-coisa” que nos abre para a multiplicidade de vozes presentes no mundo. A fratura exposta feita nas cabaças não é um erro; são estruturas ósseas propositais e poéticas: uma chamada para o acolhimento do indeterminado, do inaudito. Assim, Dalila Gonçalves costura uma relação íntima entre som e silêncio, corpo e oco, fratura e reestruturação, convidando-nos a habitar um mundo em que a falha deixa de ser um defeito e passa a ser a semente de novos futuros.
Ana Roman